Na noite do último domingo, 15 de maio, o Brasil se despediu de uma de suas maiores vozes de todos os tempos. Cauby Peixoto faleceu aos 85 anos, depois se ser internado em decorrência de uma pneumonia, em São Paulo. Abaixo você confere o nosso bate-papo com o cantor, numa matéria originalmente publicada na revista universitária da FMU em 2011 (com colaboração de Mirella Fonzar, Elisa Rosar, Júlia Meirelles, Carolina Mella, Karina Mancini, Jaqueline Corrêa e Luciana Gonçalves) e atualizada para os dias de hoje.
Quando as cortinas de veludo vermelho do Teatro Fecap se abriam, Cauby Peixoto surgia, de costas, cantando Força Estranha, de Caetano Veloso. O público delirava e aplaudia por mais de um minuto, quando então, aos 80 anos, o cantor entoava “por isso é que eu canto, não posso parar, por isso essa voz tamanha!”.
Embora Cauby se apresentasse há oito anos todas as segundas-feiras no Bar Brahma, foram os shows no Teatro Fecap, em São Paulo, que marcaram a comemoração de seus 60 anos de carreira. Ao lado de amigos como Ângela Maria, Fafá de Belém, Vânia Bastos, Agnaldo Rayol, Emílio Santiago e Agnaldo Timóteo, o cantor gravou, em um show inesquecível, o material que serviu para a coletânea “Cauby – O Mito”, composta por três álbuns e um DVD.
A energia do autoproclamado “Frank Sinatra brasileiro” impressionava. No show, 21 músicas sem pausa, gole de água ou saída de cena. Os músicos apenas seguiam o comando das mãos do cantor. No palco, a ambientação à meia luz, com cinco luxuosos candelabros em harmonia com a orquestra, recriavam o clima boêmio das boates, onde tudo começou.
Com a casa de espetáculos cheia de fãs apaixonados, Cauby Peixoto provava mais uma vez que seria eterno. Na ocasião, a libanesa Wanda Aquri revelou que o cantor compôs a trilha sonora de sua vida. “Ele me conquistou desde que cheguei ao Brasil, tinha sete anos. Tenho todos os discos e vou a todas as apresentações”.
Homenagens
Ao longo dos 65 anos de carreira, da era do rádio até o século 21, Cauby sempre foi alvo de diversas homenagens. Compositores que dedicaram canções a ele não faltam: Benito Di Paula, com Velas ao vento; Joanna, Loucura; Tom Jobim, Oficina; Jorge Benjor, Dona culpa; Roberto e Erasmo Carlos, Brigas de amor; Eduardo Dusek, Não explique; e Caetano Veloso, Cauby! Cauby!”.
Com um repertório imenso e tantas músicas dedicadas a ele, Cauby afirmava: “Nos shows, não posso deixar de cantar Bastidores de Chico Buarque e Conceição, são as mais pedidas pelo público”. O cantor também já foi agraciado com diversos prêmios, dentre os mais recentes, o Grammy Latino, em 2007. A biografia “Bastidores: Cauby Peixoto, 50 anos da voz e do mito” (2001), de Rodrigo Faour, também recebeu muitos elogios da crítica especializada.
No teatro, o cantor foi interpretado pelo ator Diogo Vilela, na peça Cauby! Cauby!, de 2006, e sua trajetória de mais de seis décadas foi recentemente levada ao cinema. Dirigido por Nelson Hoineff, que realizou os documentários biográficos “Alô Alô Terezinha” (2008) e “Caro Francis” (2009), o filme “Cauby – Começaria tudo outra vez” foi lançado em 2013 e hoje está disponível no Netflix.
Com tantas homenagens, Cauby Peixoto avaliou, na época, os seus 60 anos de trajetória de sucesso como “ótimos”, e não faria nada diferente, se pudesse mudá-los. “Por hora, realizei tudo na minha carreira e na minha vida também. Cantar é minha vida”, enfatizava.
Longevidade Musical
Para o jornalista e crítico musical, Celso Fonseca, Cauby é um grande exemplo de longevidade musical, com uma carreira sustentada por mais de seis décadas. “Ele é de uma linhagem de crooners brasileiros de velha guarda, como Orlando Silva, seu ídolo, Nelson Gonçalves e Dick Farney, entre tantos outros. Ele faz parte de uma geração de vozeirões empostadas, de sons que brotavam do peito, entonações amplificadas, passionais e dramáticas”, explicou.
Com seu timbre grave, Cauby também abusa de falsetes. Segundo Celso, seu grande mérito é ter sobrevivido a todos os movimentos musicais brasileiros, como a Bossa-Nova – com seu jeito de cantar quase sussurrante, a inovadora e transgressora Tropicália, e a roqueira e romântica Jovem Guarda. “Não é a toa que ele é chamado de ‘professor’”, dizia o crítico.
Sobre a obra ‘Cauby canta as mulheres’, trata-se de um álbum em que todas as canções têm nome de mulheres. “Entra aí a mitológica ‘Conceição’, talvez sua interpretação mais conhecida, ao lado de ‘Bastidores’, composta por Chico Buarque, especialmente para ele. Neste disco há também ‘Ligia’ e ‘Luiza’, ambos clássicos imortais de Tom Jobim”, ressalta.
Já no que se refere a Frank Sinatra, grande ídolo do músico brasileiro, por serem contemporâneos, Cauby foi acusado de imitar Frank Sinatra, o que, segundo Celso, não é verdade. “Antes de ser famoso, ele já cantava canções que se tornariam famosas com Sinatra, como ‘Night and Day’, de Cole Porter e, portanto, nada mais natural que um cantor com tantos recursos como Cauby para interpretar canções de outro gênio. Na verdade, ele gostava mesmo era do cantor americano Nat King Cole”.
E entre tantos álbuns de sucesso, qual seria o mais significativo? Para o jornalista, o disco ‘Cauby Cauby’, gravado pela Som Livre, em 1980, poderia ser assim considerado, já que nomes como Tom Jobim, Caetano Veloso e Erasmo Carlos fizeram músicas. Vem daí ‘Bastidores’, talvez seu maior sucesso.
Em meados dos anos 50, Cauby foi para os Estados Unidos (EUA), onde permaneceu por 14 meses. Naquele país, cantou na televisão e apareceu em revistas importantes. Porém, foi no Brasil que alcançou realmente a fama. ‘Conceição’, de Jair Amorim e Dunga, dois mestres do samba, gravada em 1956, pode ser considerada o maior clássico de seu repertório.
Segundo o crítico, a letra ligeiramente enigmática, com versos curtos, permitem grandes arroubos vocais do cantor. Desta forma, o que dizer desta canção, quando Cauby sobe ao palco e arranca suspiros da platéia com a sua poderosa interpretação? Sobre isso, Celso finalizou: “Vê-lo cantá-la ainda hoje é estar diante da história da música brasileira”.
O surgimento de um mito
O nome Cauby Peixoto pode até parecer artístico, mas é apenas uma abreviação de Cauby Peixoto de Barros, como foi batizado. Como o livro Iracema, de José de Alencar, era um dos prediletos da mãe do cantor, os seis filhos de dona Alice Peixoto tiveram os nomes inspirados no clássico, inclusive Cauby.
Natural de Niterói, Rio de Janeiro, o artista iniciou sua carreira na década de 1950, ao apresentar-se em programas de calouros na Rádio Tupi. Em paralelo, atuava como crooner em várias boates da região. Para se apresentar nas casas noturnas, já que ainda não tinha alcançado a maioridade, aumentou sua idade para 19 anos. Daí vem a dúvida em relação à sua verdadeira data de nascimento.
Segundo o jornalista Rodrigo Faour, autor da biografia “Bastidores: Cauby Peixoto, 50 anos da voz e do mito”, o cantor teria nascido em 10 de fevereiro de 1931, mas tem quem afirme que ele é do ano de 1934. Para lidar com as contradições, já que esse é um dos mitos que permeiam o artista, a imprensa brasileira convencionou 1931 como seu ano de nascimento.
Logo no início da carreira, em 1952, o niteroiense mudou-se para São Paulo, onde passou a se apresentar em várias rádios da capital. A respeito da cidade que lhe acolheu, ele declara, “Gosto da atmosfera cosmopolita, da sobriedade das pessoas e do estilo de vida agitado. São Paulo é o meu lar”.
Com um timbre grave e aveludado e grande capacidade para interpretar músicas em inglês, o cantor chamou a atenção do empresário Edson Collaço Veras, o Di Vegas, que passou, então, a encaminhar sua carreira. A marca registrada de Cauby, que figura no estilo elegante e nos penteados excêntricos, teriam sido estratégias sugeridas por Vegas. Mas, sobre isso, o cantor diz: “Minha inspiração vem dos artistas internacionais, sendo vários os estilistas que desenham meus figurinos”. Vegas acompanhou Cauby por anos, até falecer em 2005.
Para além dos trópicos
Em 1955, Cauby gravou seu primeiro LP – Blue Gardênia, homônimo à música do repertório de Nat King Cole. Ainda nesse período, o cantor foi eleito o Melhor do Ano, pelo crítico musical Silvio Túlio Cardoso, autor da coluna “Discos Populares”, do Jornal O Globo. Ultrapassando as barreiras nacionais, ele chegou a ser considerado pelas revistas Time” e “Life” O Elvis Presley brasileiro.
Convidado para uma excursão aos Estados Unidos, o cantor fez as malas e arriscou uma carreira internacional. Se em terras tropicais não foi preciso nome artístico, para os gringos ele se apresenta como Ron Coby, facilitando a dificuldade de pronúncia que o seu nome causava.
Nesse período, entre idas e vindas aos EUA, gravou trilhas sonoras para filmes, atuou em alguns, mas, como bem cita Rodrigo Faour na biografia do cantor, administrar duas carreiras – aqui e na América do Norte – não era nada fácil naquela época. A ausência no Brasil fez com que seus discos passassem a vender menos.
Assim como o estilo peculiar e o mito como símbolo sexual, a carreira internacional era mais uma estratégia de marketing de Di Veras. Receoso com o desprestígio do cantor em terras brasileiras, o empresário pediu que ele retornasse, pois achava que sua trajetória no exterior não estava tendo um custo-benefício satisfatório. Assim, Cauby estabilizou a carreira em sua terra natal.