Você gostou das aberturas das Olimpíadas? E de acompanhar cada lance, cada passada, cada pulo, arremesso, golpe, movimento pela televisão? Então saiba que você deve muito a Leni Riefenstahl, uma alemã que foi atriz e diretora, trabalhou para Hitler, foi considerada maldita depois da guerra e viveu até os 101 anos.
Até 1936, a única maneira de ver e se emocionar com os jogos olímpicos era indo até onde as competições aconteciam. As transmissões televisivas de 1936 foram cheias de falhas. Mas Leni mudou tudo em 1938, quando seu árduo trabalho de dois anos de edição veio à luz: Olímpia, um documentário em duas partes, totalizando mais de três horas e vinte minutos de filme, sobre os jogos olímpicos de Berlim realizados em 1936.
A primeira parte, com o subtítulo A Festa das Nações, mostra a origem grega do culto ao corpo perfeito, a abertura dos jogos, a jornada da tocha (que acontecia pela primeira vez em 1936), o desfile das nações e as provas de atletismo. A segunda parte, A Festa da Beleza, mostra um pouco dos jogadores na vila olímpica e depois parte para as demais modalidades disputadas, desta vez, sem Hitler à vista.
Há propaganda nazista velada, apenas. O narrador em um único momento diz que a raça ariana precisa mostrar sua superioridade no esporte, mas nunca deixa passar uma oportunidade para mencionar os atletas negros disputando as provas de atletismo.
Devemos nos lembrar de que o americano Jesse Owens ganhou quatro medalhas de ouro no atletismo em 1936. O documentário mostra com proeminência sua competição de salto em distância contra o alemão Luz Long, embora o desgosto de Hitler com a vitória de Jesse não tenha sido incluído na versão final. Mas o curioso é que Owens quase não se classificou para esta prova, e só o fez após receber um conselho do seu próprio adversário. Dali em diante, Luz Long e Jesse Owens se tornaram bons amigos.
Berlim foi escolhida para sediar as Olimpíadas em 1931, dois anos antes de os nazistas chegarem ao poder. A partir de 1933, houve um intenso debate sobre se judeus e negros deveriam participar dos jogos, o que ao final foi permitido. A ideia era que isso mostraria alguma tolerância, mas havia a certeza de que a Alemanha mostraria sua “superioridade” ao liderar o quadro de medalhas, o que de fato aconteceu.
E o documentário Olímpia foi, sim, pensado como propaganda ideológica e financiado pelo governo alemão. Mas Leni Riefenstahl manteve sempre a última palavra no projeto, supervisionou todas as etapas de produção e deixou boa parte da propaganda subentendida. Ela optou inclusive por dar destaque a Ibolya Csák, campeã judia e húngara do salto em altura, e ao próprio Owens, usando a lógica de que isso mostraria como a Alemanha sabia também perder.
Mas o que devemos a Leni Riefenstahl? Extremo desprezo? Muito pelo contrário: ela mostra o domínio da técnica cinematográfica o tempo todo e impressiona com a edição precisa e inspirada. Com um corte certeiro, ela transforma estátuas milenares em atletas modernos, faz ginastas voarem e cria a ilusão de que corredores norte-americanos e a seleção italiana de futebol estão “batendo uma bolinha”.
Mais do que isso: com muitas câmeras, ela e seus assistentes gravaram 250 horas de competições usando novas técnicas como o travelling e ângulos ousados, que dão ao espectador do documentário uma visão das provas ainda melhor do que a de quem via os jogos ao vivo. Ela também documenta as provas de atletismo com uma edição que cria um crescente de expectativa, até chegar à quebra do recorde. Tudo, exatamente tudo que vemos nas transmissões esportivas modernas foi inventado por Leni há 80 anos.
Apesar de ter ganhado um prêmio em Veneza com o documentário e ter ido aos Estados Unidos em busca de um distribuidor, Leni teve com Olímpia seu último sucesso. Ela ficou para sempre marcada por sua associação com os nazistas, embora versões sobre o quanto ela estava realmente envolvida sejam contraditórias. Mesmo assim, Leni ganhou uma medalha do Comitê Olímpico Internacional em 1948 por ter documentado tão bem as Olimpíadas e criado um padrão para o jornalismo esportivo que ainda não foi superado.