Mulheres que jejuavam ao lado de cobras, deitadas em camas de prego, ganham destaque no livro Cravo na Carne, obra que desvenda o mistério por trás da fama.
Você já parou para pensar que hoje, o tempo todo, estamos sendo observados, seja através das redes sociais ou mesmo por câmeras espalhadas em todos os lugares. Em 1949, o escritor e jornalista George Orwell já falava sobre o “Grande Irmão”, no romance “1984”, exibindo o retrato de um governo que fiscalizava e controlava o seu povo. Engana-se quem pensa que a vida particular passou a ser pública somente agora.
No início do século XX, a sociedade parava para assistir mais um número que envolvia jejum, cobras, camas de prego ou de cacos de vidro. Estamos falando de uma época distante do advento da televisão, ou seja, a atração estava na rua, não em casa. Conhecidas como provas de faquirismo, a atividade envolvia dedicação e corajem, características descritas no livro Cravo na Carne – Fama e Fome: O Faquirismo Feminino no Brasil.
Dos autores Alberto de Oliveira e Alberto Camarero, a obra recém-lançada já é considerada um sucesso, por desenterrar assunto completamente desconhecido para a maioria das pessoas. O livro foi lançado na cidade de São Paulo, no Rio de Janeiro e, agora, em Recife, durante o 11º Festival de Circo do Brasil.
O trabalho é resultado de pouco mais de três anos de pesquisa e traz em suas páginas a história de onze mulheres que desafiava a sociedade entre os anos 20 e 50. Época em que famílias eram mais conservadoras, dotadas de costumes e crenças que observavam a profissão de faquir ou faquiresa como atividade marginalizada. Muitas dessas mulheres não escolheram ganhar a vida jejuando dentro de uma urna de vidro, mas ninguém foge do seu destino e elas se tornaram verdadeiras atrações.
Muitos pensadores descreviam a mulheres como um ser frágil, mas ao longo da história elas provaram que podiam disputar o mesmo espaço com os homens. De acordo com os autores do livro, algumas faquiresas chegavam a cumprir provas mais longas que as dos faquires, vencendo o preconceito e levando o público ao delírio, principalmente os homens, pois as exibições continham certo glamour. As artistas se vestiam com trajes de odaliscas ou mesmo biquínis – muito usados pelas vedetes do Teatro de Revista. As provas eram realizadas em cinemas, saguões de teatros, galerias, salas comerciais e quem quisesse estar ao lado dessas mulheres deveria pagar pelo ingresso. As provas eram reconhecidas por lei, o que levava muitas autoridades aos locais de exibição, entre elas, políticos, artistas e empresários.
O livro Cravo na Carne é uma publicação da editora Veneta, contemplado pelo Prêmio Carequinha, da Funarte. Os autores pensam, futuramente, em lançar uma nova obra, dessa vez, contando a história dos faquires.
O Exótico era Vendável
Além do contato com familiares de faquiresas, idas e vindas ao cartório, o livro está baseado nas histórias contadas por meio da imprensa nacional. Jornalistas as acompanhavam quase que 24h por dia e tudo se transformava em matéria, desde uma indisposição, até a mordida de uma cobra. “Teve um mês que eu cheguei a fazer mil ligações para localizar familiares de faquiresas. Deparamos-nos com muitos parentes que veem o tema como tabu e não querem falar sobre o assunto”, ressaltou Oliveira. De acordo com o autor, hoje o tema faquirismo é pouco conhecido, tanto que é muito difícil encontrar informações na internet, sendo que as matérias divulgadas na época é um dos únicos registros que se tem e, agora, por meio do livro Cravo na Carne, que reuniu todo conteúdo.
Entre Água e Suco de Laranja
Segundo especialistas, um mês é o período que o corpo humano pode aguentar sem a ingestão de alimentos. O recorde oficial em jejum prolongado foi de 50 dias, mas no caso das faquiresas, já tivemos provas de jejum de mais de 80 dias. Elas sobreviviam na urna à base de água e suco de laranja com vitamina, mas isso não impedia que terminassem o trabalho, extremamente, fracas e debilitadas. A faquiresa Sandra foi campeã gaúcha de faquirismo em 1956 e campeã mundial de jejum feminino em 1958, ficando 83 dias sem comer. Há registros de que durante a prova cerca de 30 mil pessoas foram visitá-la.
Triste realidade das faquiresas era a exploração por parte de seus empresários, o que nos leva a entender o título Fama e Fome, já que muitas eram roubadas pelos mesmos. “Na época existia até um termo pejorativo de que empresário de faquir era sinônimo de pilantragem. Elas, presas dentro de uma urna, em um estado emocional lastimável, tinham que lidar com o sumiço do cachê no término da exibição”, contou Camarero. Essas provas eram pagas por meio de patrocínio e de bilheteria. “Algumas faquiresas, também, deixavam garrafão ao lado da urna para que visitantes pudessem valorizar a arte, contribuindo com qualquer quantia”, explicou.
Ataques de pânico e surtos psicóticos aconteciam durante as provas, o que as levavam a interromper a exibição ou fugir do local – o que nem sempre era uma boa ideia, diante da fiscalização em cima das provas. As artistas chegavam a lançar desafio à população. Se o cidadão provasse que a faquiresa se alimentava, durante a prova, ele recebia prêmio em dinheiro. De acordo com os autores da obra, um jornalista chegou a jejuar junto com uma performer, pegando carona na fama.
A Polêmica Suzy King
Considerada uma das vedetes brasileiras, a mulher que estampa a capa do livro Cravo na Carne é Suzy King, nome artístico de Georgina Pires Sampaio. Artista envolta em polêmicas iniciou carreira cantando sambas, marchas, frevos, rumbas e mambos passando, mais tarde, a se exibir com cobras em espetáculos de Teatro de Revista, circos, disputando lugar com a famosa Luz Del Fuego. Suzy criava suas cobras e tamanha intimidade lhe rendeu o título de “A Deusa das Serpentes”, termo reconhecido Brasil afora.
Em meados de 1960 ela, simplesmente, resolveu largar a cena artística. Na época Suzy não foi a única, os espetáculos teatrais e as grandes casas de shows perdiam força para a televisão e todo cenário político que se movimentava em torno da censura. Ela partiu para os Estados Unidos, onde adotou a nova identidade Jacuí Japurá Sampaio Bailey. Suzy foi encontrada morta, dentro de um trailer, no estado da Califórnia, em 1985.
Outras faquiresas também tiveram final triste. Há relatos de que Marciana estava envolvida com suposto sequestro de crianças; Rossana se suicidou um ano depois de tentar recorde mundial de jejum, sem sucesso; Yone foi assassinada pelo marido Lookan, também faquir.