O transformista que encantava o Carnaval carioca com suas fantasias. O bandido violento que matava com um único soco. O homossexual assumido que “caçava veados” na Lapa, segundo suas próprias palavras. O pai de família que cuidou de seis filhos. O malandro que enganava incautos e roubava todo seu dinheiro. O herói que não admitia violência contra os mais fracos e enfrentava desarmado a polícia. Ele era “Madame”? Ou era “Satã”? Ou ambos?
A ambiguidade era uma característica sua e ele sabia disso. Quando surgiu o apelido “Madame Satã”, no Carnaval de 1938, a dualidade instantânea cativou o público e desde então ele sabia que este seria seu título definitivo. Quando ainda não se falava abertamente em “transformista” e os termos drag queen ou crossdresser nem haviam sido criados, um malandro violento, bom de briga e ao mesmo tempo delicado, homossexual e com notável talento artístico se tornaria uma das figuras mais mitológicas da cultura carioca.
“Eu vim ao mundo junto com o século XX” era a forma como Satã, de nome João Francisco dos Santos, informava que havia nascido no ano de 1900, no interior de Pernambuco. Seus pais, descendentes de escravos, tinham dificuldades em sustentar uma família de 17 filhos. Quando seu pai morreu, em 1907, a mãe em desespero o negociou com um comerciante de cavalos em troca de uma égua. A promessa do homem era que o pequeno João Francisco trabalharia para ele e em troca receberia educação. Apenas a primeira parte do acordo foi cumprida e o menino seria analfabeto pelo resto da vida.
Cansado do trabalho escravo, o garoto fugiu em 1908 com uma mulher que lhe ofereceu emprego como ajudante de uma pensão no Rio de Janeiro. Logo João perceberia que não havia mudado muito sua situação. Ficava o dia inteiro limpando, lavando roupas e cozinhando, sem receber pagamento, educação ou algo semelhante a acolhimento familiar.
Aos treze anos, mais uma vez resolveu fugir e começou a perambular pelo bairro notívago da Lapa, dormindo nos degraus das casas de aluguel. Já nessa idade começou a ser inserido nos bacanais e teve sua iniciação sexual. Como ele mesmo dizia, “eu fui homem algumas vezes e fui bicha algumas vezes. Eu gostei mais de ser bicha”. Aos dezoito anos, homossexual assumido, foi contratado como garçom em um bordel.
Gradualmente o rapaz se encanta com a vida artística da Lapa, as cantoras de cabaré, o samba, a teatralidade e o glamour. Como uma típica drag queen dos tempos atuais, João gostava de imitar as grandes estrelas femininas da época. Sonhava em ser uma delas. Em 1928, uma jovem atriz com quem fez amizade conseguiu para ele um trabalho num show na Praça Tiradentes, centro do teatro de revista, onde fez sucesso com suas apresentações.
Desafortunadamente, a popularidade recém adquirida acabou por atrair atenção indesejada. Certa noite do mesmo ano, um guarda-civil resolveu provocar, chamando-o repetidas vezes de “veado”, com agressividade crescente até chegar a empurrões. João procurou manter a calma, seguindo o código social da época de “em guarda não se bate” e “bicha não reage”, mas em casa se enfureceu, pegou o revólver e voltou para encontrar o policial, matando-o na hora com um tiro.
A “Legítima Defesa da Honra” foi o atenuante que lhe permitiu ficar apenas dois anos preso, mas o assassinato teve um impacto duradouro em sua vida. A súbita fama de “valente” fez com que surgissem oportunidades para o rapaz atuar como segurança em bares locais. O consequente envolvimento com jogo, cafetinagem, prostituição e pequenos roubos fez com que caísse na vida de malandro, adotando inclusive a indumentária própria: camisa de seda, sapato de salto, chapéu panamá e a inseparável navalha.
Seu desempenho como segurança era elogiado pela forma como defendia as prostitutas, valendo-se em determinados momentos de golpes certeiros de capoeira com clientes violentos. A valentia também lhe trouxe vários incidentes com a polícia, que nunca lhe perdoou o incidente de 1928. Para complicar, não suportava a violência policial e intervinha quando via alguém apanhando. Surgia ali o mito do herói que defendia os oprimidos e encarava o opressor.
Em certo momento, exasperado com um delegado que frequentemente o perseguia, foi marchando sozinho até a delegacia, arrancou o homem de sua mesa e o nocauteou com uma sequência de golpes fortíssimos. Foi cercado pelos policiais e por pouco não morreu ali mesmo, sendo preso em seguida.
Em outro caso famoso, enquanto estava em um bar, um sargento apareceu subitamente e desferiu seis tiros nele, errando todos. Vendo que estava ileso, saiu em perseguição do militar e lhe deu uma sequência de navalhadas, uma delas no traseiro. E logo se espalhou a história de que havia dado uma navalhada na bunda de um sargento.
Ele mesmo alimentava seu próprio mito, ora inventado histórias sobre si, ora se calando sobre o que inventavam a respeito dele. Seu jeito ora viril, ora delicado, impressionava as pessoas e o tornava popular. E além disso, inventava hábitos peculiares. Por exemplo, gostava de se referir a si próprio como “a minha pessoa”. Dizia “a minha pessoa gostou muito disso”, “minha pessoa fez sucesso”…
Entre idas e vindas da prisão, sua consagração artística veio em 1938. Uma vistosa fantasia de sua criação, inspirada num morcego do nordeste do Brasil e lindamente decorada com lantejoulas, foi a campeã do baile de Carnaval do Teatro República. Dias depois, quando – mais uma vez – foi preso junto com outras bichas “para averiguações”, um policial que havia assistido ao filme “Madam Satan”, de Cecil B. de Mille, o reconheceu na hora:
“Não foi você que se fantasiou de Madame Satã e ganhou o desfile das bichas no República esse ano?”
João não fazia a menor ideia do que era aquilo e detestou o apelido. Mas apesar disso (ou por causa disso), logo todos o chamavam assim e a dualidade própria do termo acabou lhe agradando. “Madame Satã” é como passaria a ser conhecido. Em 1942 repetiria o sucesso com outra fantasia.
Já antes disso Satã começou a sossegar. Acabou casando com uma mulher aos 34 anos, embora nunca deixasse de se afirmar homossexual. Até o fim de sua vida, aos 76 anos, manteve o matrimônio. Com ela criou seis filhos, todos adotivos, e se orgulhava de ser um bom pai. Em uma entrevista, como exemplo, citou que uma filha havia se tornado musicista (professora de acordeão), um filho havia se tornado soldado e outro… delegado de polícia!
Seu mito se tornou tão forte que na década de 80 seu apelido batizou uma famosa casa noturna de São Paulo, em funcionamento até hoje. E sua vida foi tema de um filme estrelado por Lázaro Ramos, de grande sucesso. Pode-se dizer que por fim conseguiu criar um personagem artístico, embora não exatamente da forma como tinha sonhado.
FONTES:
Artigo: “O Pasquim e Madame Satã, a rainha negra da boemia brasileira”. Autor: James N. Green. Revista Topoi, v.4, n.7, jul-dez 2003, pp. 201-221
Entrevista com Madame Satã. Jornal O Pasquim. 05/05/1971.
Artigo: “E nem me despenteio!”. Autor: Paulo Lacerda e Sérgio Carrara. Revista de HIstória, 09/09/2007.
O que ele quis dizer com “caçar veados na Lapa”? Ele matava gays?
Não, não. Ele falava em “caçar” para descrever sua procura por encontros sexuais casuais na Lapa carioca.