Família The K-Wals, em Itasca, Ilinois – EUA (Foto: Jennifer Greenburg/ 2004)
É fato. Com o advento da internet, tornou-se muito mais fácil o acesso a informações antes restritas a determinados grupos e subculturas, ou que permeavam apenas o campo da pesquisa. Hoje em dia, é possível conferir a poucos cliques tudo o que acontece no universo retrô e mundo da música, por exemplo, coisa que não acontecia antes da virada do milênio.
Só para se ter uma ideia, nos anos 1980 e 1990, os produtores de eventos rockabilly de São Paulo convidavam as pessoas para festas por meio de cartas. Encontrar material de sua banda preferida também não era uma tarefa fácil. No lugar do Spotify ou Youtube, os apaixonados pelo som dos anos 1950 colecionavam e compartilhavam discos e revistas raras, e, com as poucas referências que tinham, criaram sua própria cena alternativa.
Apesar de ter encurtado distâncias, a democratização da informação também trouxe consigo pontos negativos para o underground. Prova disso são as notícias distorcidas e Fake News divulgadas em veículos não especializados. Por não terem o tempo suficiente de pesquisa para checagem de fontes e fatos, muitas são as mídias que propagam conceitos distorcidos e falsas verdades como se fossem notícias reais. E essas acabam sendo iscas perfeitas para quem curte e se depara com um novo link sobre o tema.
A suposta cidade americana que parou nos anos 1950
Um exemplo disso aconteceu recentemente e chamou bastante a nossa atenção. Em 2014, a versão online do famoso jornal britânico Daily Mail publicou uma interessante matéria sobre a cena rockabilly americana, com o título “As pessoas que ainda estão vivendo como em 1951: Retratos cativantes apresentam a comunidade americana do rockabilly” (“The people who are STILL living like it’s 1951: Captivating portraits take a look inside America’s Rockabilly community”)
Na matéria da jornalista Olivia Fleming, é possível encontrar fotos de diversas pessoas que vivem o estilo de vida vintage ao extremo (com roupas, decoração, carros, etc) e que foram fotografadas pela fotógrafa Jennifer Greenburg ao longo de 10 anos; inclusive alguns personagens abrem suas casas e mostram seu inusitado cotidiano. Por ser algo ainda pouco conhecido no mainstream, a pauta chama bastante atenção, tendo mais de 700 comentários e milhares de compartilhamentos na época.
Não demorou muito para a notícia começar a ser replicada, inclusive em sites brasileiros respeitados, como Marie Claire (Globo), que se mostrou o mais fiel à reportagem original. Mas, como diz o ditado, quem conta um conto, aumenta um ponto; também surgiram as mais diversas distorções sobre o assunto em outros portais, e que até hoje se propagam na web – como o caso da recém-publicação do site Aventuras na História (UOL), no começo deste mês de abril, requentando a pauta e distorcendo as informações.
Não se sabe ao certo de onde surgiu a tradução inicial distorcida, mas muitos veículos nacionais começaram a divulgar a existência de uma “cidade/comunidade americana, onde todo mundo vive como se fosse nos anos 1950”. Enquanto o Aventuras na História afirma existir uma cidade chamada “Rockabilly da América”, outros veículos como Catraca Livre, Vírgula e Hypeness não citam em momento algum o nome ou localização dessa comunidade, mas também afirmam, categoricamente, que esse local existe nos Estados Unidos. Já o UOL vai além e afirma existirem várias comunidades ao redor da América. Ou seja, além dos erros, as informações não são claras.
A importância do jornalismo responsável no combate à desinformação
Na época que o boato surgiu, o Universo Retrô ainda não existia e informações sobre a subcultura do rockabilly ainda eram bastante restritas aos amantes da cena e a pesquisadores. O portal nasceu em 2015 exatamente com o intuito de profissionalizar e documentar as informações da cena vintage/rocker brasileira e internacional, por conta das profissões e paixões de nós, editoras (eu, Mirella Fonzar, sou jornalista, enquanto a Daise Alves é publicitária).
Como jornalista e apaixonada pelo tema, venho pesquisando o assunto desde 2009, quando iniciei minha carreira como repórter cultural no MSN Estilo de Vida (Portal Onne). Desde então, tenho estudado e publicado notícias sobre as origens do rock ‘n roll e o vintage lifestyle, sempre com muita cautela, assim como a Daise em seus projetos de pesquisa, como o blog Menteflutuante Retrô. No entanto, observo que o mesmo dificilmente acontece nos veículos de massa por conta da velocidade que a web demanda e da necessidade por novidades.
Coincidentemente, alguns anos antes dessa Fake News vir a tona, em 2011 o STF decidiu que não seria mais obrigatório o diploma de comunicação social para uma pessoa atuar na profissão de jornalista. Então, estudar teorias e técnicas de escrita, reportagem, entrevista, etc, já não era mais requisito para trabalhar na área, e assim as redações foram se adaptando às novas tendências e, na minha opinião, empobrecendo seus conteúdos.
A questão é, quando se trata de um texto jornalístico com o intuito de noticiar um fato, algumas teorias não podem ser deixadas de fora, como o conceito de Lide, que é uma espécie de guia inicial para o redator compor o texto. De uma maneira geral, essa técnica deve responder às seguintes questões: o quê (a ação), quem (o agente), quando (o tempo), onde (o lugar), como (o modo) e por que (o motivo) se deu o acontecimento central da história.
Jornalismo de Barriga x Furo de Reportagem
Voltando à tal “cidade rockabilly” para entender o ponto onde quero chegar. Ao publicar ou replicar uma notícia sobre uma suposta cidade/comunidade americana não faz sentido não especificar em que estado ela está localizada. A falta de informações precisas e a divulgação de dados equivocados sem a devida pesquisa e checagem são chamadas no jornalismo de “barriga”. O termo é o oposto do famoso “furo de reportagem”, quando há uma pauta relevante e inovadora, fruto de uma investigação concreta e exclusiva.
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Obviamente um profissional de um veículo de massa (especialmente de internet, rádio e televisão) não se aprofundará em determinados temas como nós fazemos num veículo segmentado, mas é importante que o básico seja sempre cumprido na hora de informar corretamente o leitor. Checagem de informação deveria ser pré-requisito na rotina de qualquer repórter, editor, redator, blogueiro ou formador de opinião, que seja. Se a ideia é informar, é preciso acima de tudo pesquisar (fontes seguras) e ter como padrão a verdade.
A notícia original do Daily Mail, por exemplo, cumpre o seu papel informativo que é contar ao leitor que uma fotógrafa registrou a cena rockabilly/vintage ao redor dos Estados Unidos por quase 10 anos, com o intuito de apresentar o estilo de vida das pessoas que vivem como se estivem nos anos 1950. Porém, por ser um veículo de massa, não se aprofunda muito no tema.
A série fotográfica de Jennifer na verdade se chama The Rockabillies e faz parte de um livro (monografia) publicado em 2008 na Center for American Places, da Universidade Columbia em Chicago. A fotógrafa frisa que os indivíduos retratados nas fotos não são atores, mas integrantes da cena Rockabilly ao redor dos EUA e apaixonados pelo Mid-Century americano. Para captar as imagens, foi construída uma relação de confiança durante anos (2001-2008) entre a profissional e as pessoas retratadas e um grande estudo por trás disso.
É importante ressaltar que provavelmente um pequeno erro de tradução do título da matéria do Daily Mail – confundindo comunidade (tribo/cena) com cidade – tenha ocasionado essa propagação de informações falsas. No entanto, basta ler a matéria original com atenção que será possível entender que o tema central da reportagem é sobre a cena rockabilly americana como um todo. Ou seja, faltou atenção por parte de muitos redatores que replicaram a informação.
“A comunidade [cena] Rockabilly, composta por pessoas de várias cidades dos Estados Unidos, não apenas se veste como nos anos 50, mas também dirige Cadillacs perfeitamente preservados e decora suas casas com móveis como os dos cenários de Mad Men.” – Trecho da matéria original traduzido do Daily Mail.
O perigo da propagação de um vírus chamado Fake News
Nos últimos anos, a web vem se tornando palco para a divulgação massiva de conteúdos falsos. Exemplos não faltam, como o movimento antivacina e as milhares de receitas de automedicação propagadas durante a pandemia do novo Coronavírus, ambos casos com consequências reais para a saúde pública ao redor do globo. Sem contar notícias envolvendo políticos e instituições que impactam diretamente o resultado de eleições pelo mundo.
As Fake News têm um grande poder de viralização, ou seja, espalham-se rapidamente e no final não se conhece mais a fonte de propagação – qualquer semelhança com o COVID-19 é mera coincidência. Sejam de cunho político ou envolvendo qualquer outra temática como bem citamos, as matérias com informações falsas geralmente apelam para o emocional do leitor, fazendo com que as pessoas consumam o conteúdo sem confirmar sua veracidade. E o pior: compartilhem com sua rede.
O termo se tornou popular em todo o mundo em 2016, na época da eleição de Donald Trump, e serve para denominar informações falsas que são publicadas, principalmente, na internet. Apesar de parecer recente, o termo em inglês para designar notícia falsa é antigo, como explica a reportagem do Huffpost Brasil: Segundo o dicionário Merriam-Webster, essa expressão é usada desde o final do século 19.
No livro Pós-Verdade: A nova guerra contra os fatos em tempos de Fake News, de Matthew D’Ancona, publicado pela Faro Editorial, o autor nos passa a ideia de que vivemos uma era de fragilidade institucional, na qual o ideal de verdade está vulnerável. O impacto emocional vale mais que os fatos em si e exatamente quando a confiança na mídia é mais requerida, ela se mostra enfraquecida.
Para o presidente da ONG SaferNet, Thiago Tavares, os meios de comunicação têm papel fundamental para combater esse fenômeno: “No momento em que você não consegue mais distinguir o que é fato ou mentira, cabe aos veículos de imprensa educar a população e qualificar o debate público”, declarou em entrevista à TVT.
No final, fica o nosso desafio como veículo independente e segmentado: como educar o consumidor de conteúdo quando a própria imprensa de massa ajuda a propagar erros?